As crônicas do velho no trem- A ilha perdida


Olá, variáveis!!! Mais uma terça, mais uma crônica, a diferença é que desta vez ela é em homenagem a algo, ao aniversário de Brasília.  Para quem não conhece esse personagem e suas crônicas, basta clicar aqui para conferir os textos anteriores.

                   Desenho produzido por Gabriel Pêra 
A ilha perdida

Sabe, pode parecer que não, mas eu nem sempre estive no metrô de Brasília, o que deveria estar bem claro, afinal, eu tenho 77 anos de não vida e esta cidade completará 57 no dia 21 de abril. O fato é que eu sou de São Paulo, da época em que lá só tinha café e escravos, falando dessa forma parece até que um escravo é um acompanhamento para a bebida quente e escura, a verdade é que naquele tempo eles poderiam ser tudo, menos gente, só que esse é um assunto trágico e pertinente para outra crônica. Hoje quero trazer algo de bom, não apenas constatações infelizes sobre coisas que devem mudar.
Diante do aniversário do planalto se aproximando, me vejo fadado a pensar sobre a minha história com esse pedaço de terra no interior do país. Uma história até interessante.
Como sou mais antigo do que qualquer coisa de um antiquário, ou quase isto, na época em que vivi este país tinha como foco o Rio e São Paulo, no máximo Minas Gerais se destacava além dessas duas. Não é à toa que até os dias de hoje esses estados ainda são dos mais importantes e desenvolvidos. Sendo assim, se você quisesse ter algum conforto o ideal era estar em um desses lugares, além de ter dinheiro.
Depois que aquele velho de 79 anos morreu, eu mesmo, não sei nem como sobrevivi por tanto tempo, dizem as más línguas que vaso ruim não quebra e eu realmente não era flor que se cheire... Bem, foi isso, bati as minhas botas e houve todo aquele alvoroço pós-morte “Carambolas! Eu morri, mas ainda estou aqui...”, “Onde está o céu? Talvez o inferno... Provavelmente o inferno.” Acredito que tenha passado quase dois anos entendendo que eu tinha sim partido, embora ainda estivesse ali, entre os vivos, digo quase porque o tempo passa de uma forma um pouco diferente quando se morre. Se ao menos eu tivesse dado ouvidos a uma mãe de santo que me alertara outrora, dizendo que eu vagaria por muitos anos, não teria passado por todo o transtorno da aceitação.
 De qualquer forma, chegou um momento em que aceitei, conheci diversas outras almas penadas presas ao mundo carnal, das mais insuportáveis as que pareciam não merecer estar aqui. Até então eu estava em São Paulo capital, e ali era o lugar onde mais morriam pessoas neste país, eu poderia jurar. Só Deus sabe se era verdade ou não, mas que ali estava lotado, tanto de gente, quanto de fantasmas, isso estava. Vai ver era pelo fato de que havia muita gente apegada àquelas terras.
 As coisas mudaram quando percebi que com o meu corpo fantasmagórico eu poderia pegar trens, bondes e até mesmo navios sem pagar, decidi que sairia dali, que buscaria uma nova morada. Vaguei por cidades do exterior ao interior do país, durante longos vinte e dois anos foi assim, eu pingando de um lado para outro. Confesso, vivi muitas coisas nesse tempo, várias histórias até divertidas, que serão contadas alguma hora, mesmo assim era hora de eu encontrar um lugar para passar o resto do infinito.
Nesse tempo fiquei sabendo que o tal do presidente Juscelino iria mesmo inaugurar a cidade que se tornaria a futura capital federal, parecia uma ótima oportunidade de fugir dos mortos das metrópoles, uma cidade nova era gente nova, provavelmente tão imaculada que nem falecidos tinha até então. Dito e feito, Brasília se mostrou a minha ilha da salvação, era calma e fresca, como o bebê do país, emanava novos ares, mesmo sem encher meus pulmões com ele era possível senti-lo entrando pelas minhas narinas.
Como uma filha minha, a capital cresceu e o povo surgiu de todos os cantos em busca de quase o mesmo que eu. Esse mesmo povo, 57 anos depois, agora inunda os vagões do metrô, que se tornou minha morada, como se não enxergasse que aqui continua sendo a mesma ilha perdida, planejada e de céu azul intocável. Um lugar das belas flores dos ipês, de pistas largas como o Eixão e tesourinhas infindáveis.  
Sentado na cadeira da estação Shopping após toda minha volta ao passado, constato que de fato a cidade está tomada de ratos do governo, como as pessoas não se cansam de falar, embora veja com os meus olhos mortos que permanece um belíssimo lugar, mesmo sem o mar para adornar as beiradas de terra. Gratidão é o que fica para mim, foi em Brasília que me fiz o que sou, um homem (fantasma) melhor. Parabéns a minha menina.
Dei voltas enormes para falar do meu amor, agora vocês sabem mais sobre a minha história. E aos moradores fica a sugestão, olhem mais para o que tem a sua volta, para os prédios e construções, para essa beleza urbana, vale mais do que olhar pela décima quinta vez para a telinha que continua mostrando o mesmo de antes, malditos aparelhos alienantes. 

                                             

Foi isso, pessoal. Gostaram da terceira crônica? Comentem aqui embaixo e não se esqueçam de compartilhar, é sempre de muita ajuda. Aguardem que na semana que vem tem outro post desse fantasma (terça-feira). 

Beijão!!! Até a próxima. 😉💓
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